Vamos
tentar perceber os contornos internos e externos da perseguição violenta dos
chamados "fraccionistas" pelo MPLA de Agostinho Neto, o primeiro
presidente de Angola, durante a qual morreram milhares de pessoas.
A
historiadora portuguesa Dalila Mateus publicou com o seu marido Álvaro Mateus o
livro “Purga em Angola” sobre este episódio da história angolana. Nesta segunda
parte da entrevista à DW, ela fala sobre os contornos dos acontecimentos.
Um
papel importante no 27 de maio de 1977 tiveram os soldados cubanos, que lutaram
ao lado do MPLA de Agostinho Neto (na foto: início da retirada dos cubanos de
Angola em 1989).
De
acordo com Dalila Mateus, muito da história de Angola e sobre o 27 de maio de
1977 ainda estará por contar, porque falar destes acontecimentos tornou-se um
tabu, pelo clima de medo que se instalou naquele país. Toda a documentação que
tem recolhido está depositada na Torre do Tombo em Lisboa e Dalila Mateus tem
esperanças que, a seu tempo, o Tribunal Penal Internacional possa debruçar-se
sobre estes atos para que seja feita justiça em nome das vítimas e dos seus familiares.
DW
África: Muitas vítimas eram militantes do MPLA, considerados "heróis"
da luta contra os portugueses. Como se explica tanta violência dentro de um
movimento de libertação?
Dalila
Cabrita Mateus: O MPLA era, de facto, uma frente, agrupando gente de diferentes
quadrantes políticos e sociais: comunistas pró-soviéticos, pró-chineses,
pró-titistas, nacionalistas negros, terceiro-mundistas e muitos outros, que
estão dentro do MPLA.
Mas
Neto trata esta frente como um partido leninista, construído sobre o princípio
do chamado centralismo-democrático, mas com muito centralismo e pouca
democracia. Ele é presidente, é o secretário-geral e é o tesoureiro. E quem não
pensa como ele é dissidente ou "fraccionista".
E
estes dissidentes são tratados sempre da pior forma. A Assembleia que elege
Neto para presidente, elege para vice-presidente Matias Miguéis, também negro.
Matias Miguéis era adepto de Viriato da Cruz. Em 1965, foi levado para Dolisie
[hoje Loubomo, uma cidade da República do Congo] e morto. A partir daqui, a
partir desta data, a execução dentro do MPLA passa a ser a forma de resolver o
problema das dissidências.
DW
África: Muitos protagonistas do levantamento do 27 de maio eram militares da
chamada 1ª Região Militar, que lutaram contra o colonialismo português? Porquê?
DM:
De facto, perto da capital [Luanda], formou-se um grupo de guerrilha, cujos
primeiros elementos foram participantes no 4 de Fevereiro de 1961. Praticamente
não tinham ligações com o MPLA, que só uma vez, através de um destacamento
comandado por Monstro Imortal [nome de guerra de Joãõ Jacob Caetano, comandante
do MPLA], conseguiu chegar até eles, levando-lhes alguns alimentos e armas.
Quem
são estes homens da 1ª Região Militar? Apoiavam-se nas redes clandestinas que
se iam formando na cidade de Luanda. Resistiram13 anos aos ataques do exército
português, da polícia política portuguesa, a PIDE, e até da FNLA [movimento de
libertação concorrente]. E nunca foram aniquilados.
No
Congresso de Lusaka, foi o seu representante, Nito Alves, que salvou Agostinho
Neto. O qual começou por lhe "pagar" promovendo-o. Mas, depois,
expulsou-o, prendeu-o e, finalmente, mandou-o matar.
Parece
ter sido fuzilado. Depois, segundo as nossas informações, a sua cabeça andou
decepada por Luanda, em cima duma carrinha. Finalmente, segundo dizem, terão
atirado o corpo ao mar.
DW
África: Muitos dos angolanos que estudaram na União Soviética foram chamados de
volta e executados. Porquê tanto medo dos que tinham ligações com a União
Soviética?
DM:
Não só da União Soviética, mas de todos os países de Leste e mesmo de Cuba. E o
problema não era o medo dos comunistas. Eram simples bolseiros que se formavam
nas universidades. Na esmagadora maioria não eram comunistas, nem se
interessavam pela política. O problema era outro.
Nas
explicações oficiais sobre o 27 de Maio, uma das versões era que se tratava de
um golpe dos comunistas, apoiado pela União Soviética e pelo PCP [Partido
Comunista Português].
Essa
versão destinava-se a facilitar o "namoro" aos Estados Unidos da
América, que na altura apoiavam a FNLA e a UNITA [os dois movimentos angolanos
de libertação concorrentes ao MPLA].
Ora
como não havia comunistas suficientes para justificar esta atuação, então
inventaram-nos. Mandaram, então, regressar os bolseiros nos países de Leste,
que pensavam ir para o Congresso do MPLA. Estes homens são convencidos que vão
a Luanda para participar no Congresso do MPLA. Mas, ao desembarcarem, foram
presos. E, segundo um antigo dirigente do MPLA que eu entrevistei, acabaram por
ser degolados.
Da
matança, só escapou o filho de Neto e um amigo que estudavam na Roménia.
DW
África: José Eduardo dos Santos estudou na União Soviética, em Baku,
licenciou-se em Engenharia de Petróleos. Mesmo assim escapou à repressão. Como
explica isso?
José
Eduardo dos Santos matinha relações estreitas com o bloco soviético (aqui com
Erich Honecker, secretário-geral do partido comunista da RDA - República
Democrática da Alemanha)
DM:
Quanto a Eduardo dos Santos, dirigente do MPLA, também esteve para ser preso.
Mas não por ter estudado na União Soviética. Mas sim, pensamos nós, que correu
este risco pelo facto de, sendo presidente de uma comissão de inquérito ao
fraccionismo, ter assinado um relatório em que ele próprio que negava a
existência desse fraccionismo.
Pelo
menos, na Cadeia de S. Paulo, um dos carrascos dizia muitas vezes que, para
quem queria ouvir, só faltava prender Lopo de Nascimento (o primeiro-ministro)
e o Eduardo dos Santos. Que só não foi preso, porque o governador do Lubango,
onde se encontrava, não o deixou prender.
DW
África: Qual era o modelo do "Poder Popular" que Nito Alves defendia?
DM:
No nosso livro dizemos que Nito Alves padecia das limitações de quem vivera
muitos anos isolado e acossado. Se pensamos como viveu esta gente na 1ª Região,
eles estavam sistematicamente a ser acossados pelo exército português, pela
PIDE e pela FNLA.
Portanto,
Nito Alves encontra um manual marxista e transforma este manual numa espécie
duma nova Bíblia, onde ele encontra soluções para todos os problemas.
Mas
estas limitações vão levar a estas manifestações, que por vezes podem parecer –
ou são – de radicalismo e de dogmatismo. As suas "Treze Teses" são de
facto um texto insuportável, com dezenas de citações a propósito e, sobretudo,
a despropósito.
No
entanto, quem aparecia a defender soluções radicais eram Neto e alguns dos seus
homens, que, de vez em quando, falavam da "revolução proletária".
Não
ouvimos isto de Nito Alves. Ele e os elementos mais esclarecidos do seu grupo
retorquiam que era um disparate, pois em Angola não existia uma classe operária
capaz de realizar tal revolução. E preferiam falar de uma democracia popular.
DW
África: Era um modelo democrático ou comunista, inspirado na União Soviética?
Dalila
Cabrita Mateus - historiadora portuguesa
DM:
O modelo soviético não tinha qualquer sentido em Angola, até porque a maioria
dos operários e técnicos qualificados eram portugueses. E é um erro pensar que
eram ideológicos os problemas que preocupavam Neto e os seus próximos.
O
que os preocupava era, em primeiro lugar, a denuncia que os nitistas faziam da
corrupção, que estava a acontecer. E davam exemplos concretos dessa corrupção.
Preocupava-os,
em segundo lugar, a influência dos nitistas nas organizações populares eleitas
nos musseques [os bairros pobres de Luanda]. Eram eleitas as organizações
populares e essas organizações tinham um papel fundamental.
E
preocupava-os, em terceiro lugar e principalmente, a possibilidade real de os
"nitistas" virem a conquistar a maioria dos delegados no próximo
Congresso [do MPLA].
DW
África: Além de fraccionismo, Nito Alves foi também acusado de racismo. Com
razão?
DM:
De facto, Nito Alves foi acusado de racismo por ter afirmado que "no dia
em que, em Angola os cidadãos varredores de ruas forem não só negros, mas
mestiços e brancos também, o racismo desaparecerá". Aí estava o
"racismo das lagartixas", acusava o Jornal de Angola.
Só
que a citação estava incompleta. Nito Alves dissera também que o racismo teria
desaparecido no dia em que "os camaradas angolanos de origem
europeia" puderem ascender "aos mais altos órgãos do MPLA e às
responsabilidades administrativas e outras no aparelho de Estado".
Admitir
que brancos e mestiços, considerados "angolanos de facto e de
direito", pudessem ocupar cargos de topo no MPLA ou no Estado não é uma
posição racista.
DW
África: Algumas vítimas do 27 de maio tinham tido ligações estreitas ao Partido
Comunista Português (PCP), que, por sua vez, era um aliado do MPLA na luta
anticolonial. Que papel teve o PCP nos acontecimentos?
DM:
A única pessoa que foi directamente acusada pelo MPLA de ser do PCP era Sita
Valles, que fora dirigente da UEC – União dos Estudantes Comunistas. Mas Sita
Valles já não era membro do PCP.
Um
mês depois do 27 de Maio, Sérgio Vilarigues, membro do Secretariado e da
Comissão Política do PCP vai a Luanda e dá uma entrevista ao oficioso Jornal de
Angola. Em setembro, a editora comunista publica a versão dos dirigentes do
MPLA sobre os acontecimentos. E nesse mesmo mês de setembro, o vice-director da
DISA, ainda hoje conhecido em Angola pelo "assassino", encabeça uma delegação
do MPLA presente na Festa do jornal comunista Avante!
Assim,
se houve participação do PCP foi ao lado do Presidente de Angola [Agostinho
Neto] e dos "vencedores" do 27 de Maio.
DW
África: Como se explica o facto de, fora de Angola, poucos conhecerem a
repressão do 27 de maio quando, ao mesmo tempo, todo o mundo conhece as
atrocidades cometidas pelo ditador chileno Augusto Pinochet, mais ou menos na
mesma época, mas que "apenas" causaram a morte de aproximadamente
3.000 pessoas?
DM:
Difícil seria que fosse doutro modo.
Primeiro
porque, mesmo em Portugal, o caso foi silenciado. Na imprensa portuguesa era
surpreendente a ausência duma posição activa de denúncia das violações
flagrantes dos mais elementares direitos do homem.
Segundo,
porque em regra e em relação à África, só quando as barbaridades atingem
enormes proporções é que elas são notícia.
Terceiro,
porque a diplomacia dos interesses continua a ter muita força.
DW
África: Será preciso uma Comissão da Verdade do 27 de maio de 1977 para chegar
a uma verdadeira reconciliação em Angola?
Agostinho
Neto - o "vencedor" do 27 de maio de 1977
DM:
Tenho muitas dúvidas que assim possa acontecer 35 anos depois dos
acontecimentos, quando muitos dos principais actores já faleceram ou
abandonaram a vida política, uma tal comissão não me parece ser possível, nem
importante.
Nesta
altura, afigura-se mais sensata e oportuna uma acção que envolva dois aspectos:
Primeiro:
o esclarecimento e o assumir de responsabilidades pelo próprio MPLA.
Segundo
e principalmente: que se faça uma busca e a entrega das ossadas dos mortos para
que as famílias possam fazer o luto da sua dor.